quarta-feira, novembro 15, 2006, posted by Pedro Carvalho at 7:04 da tarde
Lisboa, 15 de Novembro de 2006
Belo dia, solarengo, algo frio, mas suportável. Tempo de sapatilhas, calças num tecido quente, camisa leve mas apoiada num casaco grosso. Saio de casa bem cedo e cedo chego à faculdade. “Olá”, “Bom dia”, “Tudo bem?”, “Como está?”. Após isso concluí que estava “Bem obrigado”. Sucedeu-se a verdadeira bateria de aulas previstas e o almoço. O tempo estava alterado.
As pequenas gotas de chuva guardadas para o meio da manhã encorparam numa chuva forte após a hora de almoço. Tinha coisas a fazer no edifício de ciências económicas e por ali me mantive sem frustração molhada. A chuva não cessou, não conhecia abrandamento momentâneo, complicando esgotos, paragens de autocarro, beirais, acessos pedonais, passadeiras, estradas, passeios e ladeiras. Até ao caos e sem fim. A revolta entoava nos céus e era visível na invisibilidade provocada pelo névoa baixa. Hora de ir embora. Fui.
Entre a faculdade e todo o recinto da Universidade Católica os poucos metros pareciam alargados pelo desconforto pluvial, mas eu segui rumo até ao primeiro ponto de desistência, uma paragem de autocarros. Por lá estavam todos os desistentes da também curta caminhada que haviam acabado de fazer. Eu não me abriguei, e segui olhando o chão naquela que após o segundo minuto era já a maior constipação em potência da minha vida! Todo o viaduto que liga a faculdade ao palma é inóspito em qualquer dia do ano, hoje era mais. Chutava água em passadas seguras e firmes, faltava apenas levantar a cabeça. Algo me fazia seguir sem pensar em paragens nem em chegadas, algo fazia-me apenas caminhar sobre toda a chuva do mundo, algo que apenas a mim me fizera caminhar entre três milhões de seres iguais, algo que tenho dentro de mim sempre. Por carregar numa pequena vela a mais forte das chamas, caminhava eu sobre os mal dizeres do paraíso, num baptismo revigorante. A chuva cai como glória dos distintos. Ao sol que é para todos, rasgava o céu uma chuva que por estandardização social, apenas me molhava a mim. Aos distintos o beijo da chuva.
Porque a chuva não apaga a chama de um “Mais Além”. Porque a chuva tudo banha e porque poucos se deitam nela, caminhava eu. Chegado ao Palma começava a perceber todo aquele andar. Era preciso levantar mesmo a cabeça. Quando chove muito, não chove demais. Levanto a cabeça e na aparente inocência translúcida da água, esconde-se a força de nos cegar. Quando chove muito, não chove de mais. Sigo de rosto vincado no resto do caminho. Olho nos olhos quem não me vence, entro dentro da alma daquela chuva representada no nevoeiro cerrado do metro seguinte, sou o seu pesadelo, o único que não se abriga e escolhe o desafio. Três milhões de pessoas, a chuva, e alguém carregando uma vela. Todos sem ordenação possível perante o dilúvio.
No fim da encosta descida, esconde-se uma esquina a virar sem qualquer reserva. O vento que não me tocara na descida do Palma, serve-se de cada frincha aberta na minha alma para me gelar. Existirá eterno desconforto em cada frincha latente, mas são esquinas que se dobram ao virar de página. Páginas pesadas de dias que nos parecem iguais.
Entre aviões, entoa um trovão de som grave. Já não tenho medo de trovões. Hábito que faz milagres não será hábito de monge. Sem religião a chuva faz milagres. No metropolitano ou no autocarro não chove nem faz sol. Existem então pessoas em porções de cem nesses locais. Até casa o caminho é agora mais curto e desinteressante, porque num quarto de hora o baptismo da chuva me beijou, mostrou-me que nunca chove de mais, mostrou-me que a maior transparência tem a maldade de nos ofuscar, ensinou-me que o nevoeiro tem medo de quem o enfrenta, contou-me o que é um trovão, golpeou-me as frinchas abertas, mostrou-me o que é ser “Mais Além”.
Cheguei a casa e a minha mãe falou-me de temporal. Não tinha sentido nada e a chama que trago sempre comigo estava mais acesa e incandescente que nunca. Acho que não choveu porque para um “Mais Além”, quando chove muito, não chove demais.
 
1 Comments:


At quarta-feira, novembro 15, 2006 8:55:00 da tarde, Blogger Rodrigo Cordeiro Escapa

Grande momento literário, sem dúvida. Mas..devo dizer literário? Pensado ou Vivido, soa-me bem melhor.
Gostei.