Vejo-me translucido num vidro de comboio, o sol baixo cega-me como me sempre cegou talvez, em toda a minha longa viagem, que nos cansa, nos põe tontos, cambaleando a cada ferida que se abre. Por mais espelhado que seja o caminho, por mais trigo já colhido, por mais vento que ondule no olival, por mais charco, pedra, carreiro, girasol, rosto, estação do ano, apiadeiro, tudo na sua natural desordem arrumada, nós penamos, mas não nos cansamos de estar aqui pelo trago vitorioso de simplesmente chegar. Chegar sempre e a horas pouco certas, tal como não mandam os bons cinismos e cobardias.
Livres. Nós, todos aqueles tão poucos, os que ninguém entende por serem aquilo que a consciência mais facilmente entende e todos os dias os corpos arrependidos do que são renegam, nós, somos os "Mais Além". Tambem existe coragem no ser mais fácil, que é ser apenas o que se é na verdade. E a magia de ser "Mais Além", reside em ser aquilo que todos deviam ser, mas tão poucos o conseguem, porque afinal de contas, parece ser mais fácil esconder, mentir, fugir, ser políticamente correcto, ser falso, ser pedante, ser o que não se é, e tornar-se tudo isso, do que deixar-nos simplesmente ser aquilo que sempre fomos, com todas as consequências que nos fazem penar, e chegar como mais ninguém. E somos loucos entre vós, concretizamos aquilo que a vossa pequenez desconhecia poder de facto existir para além dos filmes: a lealdade, a coragem, a humildade, a energia, a diferença, a vantagem, o orgulho de assim ser, a luz, o penar, o chegar. Além. Tão além que vocês nos deixam de ver e nós ficamos sempre.
Eles não sabem porque corremos à fugida do comboio, eles não percebem porque penamos. Eles nunca se abraçaram a um amigo como quem abraça uma oliveira e sente o seu azeite passado, a sua sombra presente, e a sua frescura à noitinha. E nós respiramos fundo aquele ar ameno que invade o nosso fundo com a mesma tranquilidade.
Eu faço o que não conhecia saber fazer. Vens contente por que te mentes e te pensas feliz, dizer-me que o que de melhor faço não faz sentido? Vens tu que nos trilhos do comboio perdeste os escrúpulos, nos mesmos pelos quais os "Mais Além" penam por gosto porque sabem que chegam e se passeiam por paisagens carregadas de consciências que tantos atiraram borda fora por pesar de mais. Vens tu, que como eles, lançaste a tua consciência ao fundo do comboio, para não perceber o que somos nós, para seres vazio e conveniente à tua degradante vida social e enganadoramente erecta. A tua viagem foi mais curta que a nossa, e do fim da tua linha vês a consciência com falso desprezo, falso porque é fundado num medo terrível de teres consciência e de perceberes quem nós somos. Tu tens medo da dignidade, da verdade e dos teus truques.
Eu aqui te repito, e mantem o desconforto, eu irei repetir sempre: a maior felicidade é penar para chegar. Como um "Mais Além".
Aos que têm medo...